Um anjo em forma de mulher
Maio. Mês das mães. Mês das noivas. Gostaria de prestar minha homenagem a vocês, rosas de maio, apresentando aos leitores do REC 2010, uma entrevista com a saudosa Zilda Arns, médica sanitarista, fundadora da Pastoral da Criança. À frente deste projeto desde seu início, em setembro de 1983. Juntamente com uma rede de voluntariado, conseguiu resultados impressionantes no sentido de reduzir as causas da desnutrição e da mortalidade infantil e de promover o desenvolvimento integral de crianças, desde a concepção até os seis anos de idade. Um trabalho que se tornou referência no Brasil e no exterior. Dra Zilda foi uma das vítimas do terremoto que devastou o Haiti, na noite de terça-feira (12), em Janeiro de 2010. Tal qual guerreira que tomba em campo de batalha, ela estava dentro de uma igreja, onde acabara de proferir uma palestra para cerca de 150 pessoas, falando de sua história pessoal e do trabalho desenvolvido na Pastoral da Criança.
Antes de apresentar a entrevista propriamente dita, gostaria de situar o leitor no contexto no qual ela foi realizada.
Em 2002, terminava eu o curso de Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e como projeto de conclusão de curso, resolvi escrever o livro-reportagem Luzes e Sombras, tratando da questão da criança e do adolescente em situação de risco. No dia 04 de junho daquele ano, a Dra Zilda veio à Campinas/SP, receber o título de cidadã campineira. Aproveitei para marcar essa entrevista. Conversamos no palco do teatro InTouch que, por coincidência, seria inaugurado naquele dia, no distrito de Barão Geraldo. Nesse ambiente, dedicado ao entretenimento, a médica falou, dentre outros assuntos, da seriedade do trabalho da Pastoral da Criança, desigualdade social e educação.
José Flávio - A Pastoral da Criança acompanha a criança até os seis anos de idade. E depois? O que acontece?
Zilda Arns - A Pastoral da Criança foi fundada em nove de setembro de mil novecentos e oitenta e três, especialmente para reduzir a mortalidade infantil, a desnutrição e a violência na família. Estudos demonstraram que o adulto é muito do que foi na infância. Se, quando criança, ele foi tratado com respeito, com amor, se tinha saúde, educação a criança evolui para um jovem feliz, equilibrado. A primeira infância é muito importante. Nós optamos por cuidar da primeira infância. Buscamos com nosso trabalho atender as crianças, não só na parte de saúde, mas também na educação, na família, na educação para a fé. Antes era uma novidade a Igreja pesar criança, onde já se viu, hoje é totalmente aceito, não só no Brasil como no mundo todo. Após os seis anos a escola deveria assumir o trabalho com as crianças, digo, ter reforço escolar, música, arte. Seria muito mais barato se tivesse nos bolsões de pobreza, uma escola funcionando o dia inteiro com comida, música, arte, esporte, educação para o trabalho. Sairia mais barato do que ter de cuidar de menores infratores. O que a Pastoral da Criança faz é um trabalho de prevenção, no sentido de que as crianças cresçam normalmente e felizes.
José Flávio - A Sra. vê alguma relação entre pobreza e marginalidade?
Zilda Arns - Todas as pesquisas demonstram que, quanto maior a concentração de renda, maior a criminalidade. Se o município é todo pobre, há pouca violência. Ou se o município é todo rico, há pouca violência. Mas se há muita gente pobre e pouca gente rica, então essa diferença gera violência. O importante na educação para a paz são as ações básicas como; saúde, nutrição, cantar, mamar no peito, rezar, educar os filhos, ajudar as mães. Políticas compensatórias como o Bolsa Escola, Bolsa Família são uma saída, mas, além disso, tem que se erradicar o analfabetismo, cuidar do meio ambiente. Os bolsões de miséria devem ser um problema a ser enfrentado não só pelos governos, mas por toda a sociedade. O governo tem que ter um programa que fixe a pessoa, seja no campo ou na cidade. Um programa de habitação, lazer, educação, gerar oportunidade de serviço ou de renda. Realmente, a pobreza gera muita iniqüidade, além do enorme prejuízo que causa as crianças, pois geralmente, a miséria não vem sozinha: traz junto consigo a falta de informação, analfabetismo, com isso, as pessoas se tornam mais vulneráveis. É uma situação injusta, uns tem comida demais e jogam fora, e outras não têm o que comer.
José Flávio - A Sra. afirmou em entrevista ao Jornal Estado de São Paulo, em abril de 2000, que quanto maior o grau de estudo da mãe, menor é a possibilidade de ocorrência de morte para seus filhos. Que relação há entre analfabetismo e mortalidade infantil?
Zilda Arns - Quanto mais baixa a escolaridade, menor a condição da mãe de cuidar da criança. Falta informação. Ela não pode ler, tem dificuldade de se mobilizar quando a criança está doente. Ela depende dos outros até para pegar um ônibus, para saber um endereço. Então a mortalidade infantil é inversamente proporcional a escolaridade da mãe. Por isso, o instrumento principal da inclusão social é a democratização do saber.
José Flávio - Na opinião da Sra. alguns programas de TV, de certa forma, incentivam as crianças a serem violentas?
Zilda Arns - Os valores culturais são muitos importantes. Quando os ensinamentos da família são sólidos, a criança aprende a ter um sentido crítico. E quando a criança se cria com um espírito crítico, ela pode até ver, mas ela sabe que aquilo está errado e não deve agir de forma semelhante. Quando a criança se cria num ambiente no qual não há muitos princípios, os valores culturais ficam conturbados. Aí entra promiscuidade, desonestidade, agressões. Então ela pensa que aquilo é normal. Essa questão depende muito da educação que se dá as crianças.
José Flávio - A partir dos anos 90, o Terceiro Setor (Organizações Não Governamentais) teve um crescimento muito grande, atuando inclusive, em áreas onde o Estado deveria atuar. Isso se deve a um aumento da solidariedade ou é falha do Estado?
Zilda Arns - Na minha percepção, o Estado é administrador do nosso dinheiro. Isso não quer dizer que eu posso jogar lixo na rua porque estou pagando um lixeiro. Eu percebo os problemas sociais como falta de visão de conjunto. Nós, enquanto sociedade, esperamos somente que o governo faça. É necessário arregaçar as mangas e fazer a nossa parte. A sociedade está assumindo cada vez mais sua parcela de responsabilidade. Isso é maior consciência social. E essa atitude de “assumir mais”, de certa forma, pressiona o governo a agir.
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