"Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
(...)
É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
(...)
É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca."
(Morte e Vida Severina –
João Cabral de Melo Neto)
O enterro do meu tio Sérgio
Não costumo guardar datas, por mais importantes que sejam, mas aquele dia eu não me esqueço, mesmo se não menciono aqui com números, acho que não carece. E nem tanto por ter sido a despedida do meu tio Sérgio, o que seria um grande motivo pra não esquecer, mas por um pequeno detalhe que ficou daquele dia. É que para acompanhar o adeus daquele senhor de noventa e poucos anos, e é sempre triste quando alguém vai embora pra sempre, seja em qualquer idade, mas o que me faz lembrar mesmo aquele momento é que eu, logicamente, tive que faltar ao trabalho naquela tarde e assim fiquei com uma falta no livro de ponto. Como não sou de faltar, isso me causou certa estranheza até hoje. Sempre que vou assinar o livro e vejo aquela falta, embora justificada, fico me perguntando o que me levou àquela ausência, e é aí que me lembro: ah, foi no dia do enterro do meu tio Sérgio. Meu tio sempre foi um homem solitário, nunca se casou, nunca foi pai. Morava com uma irmã e uma sobrinha. Até que suas companhias se foram e ele ficou sozinho de vez. Andou ainda batendo em algumas portas de parentes, mas na sua idade, acostumar-se com coisas que não faziam parte do seu mundo não seria fácil. Assim ele foi terminar os seus dias de vida na sua cidadezinha natal, a pequena e pacata Taipu. Acreditem que até para ser enterrado, meu tio precisou contar com a sorte. Talvez por não ter vivido muito tempo ali, naquela sua hora final poucas pessoas o conheciam e quase ninguém compareceu. Foi preciso que um sobrinho saísse pedindo a alguns conhecidos para que nos ajudasse a conduzir o caixão do nosso tio à igreja e depois ao cemitério. Tio Sérgio que, quando em vida sempre foi um homem muito calado e só, naquele momento estava mais sozinho do que nunca. E nessas horas ninguém acompanha ninguém, é a hora mais solitária de um ser humano, o momento em que se passa para o outro lado. Naquele dia eu estava sozinho em casa com o meu filho de doze anos e tive de convencê-lo a me acompanhar àquele sepultamento. Programa nada agradável para uma criança. Mas eu enfeitei as coisas. Falei que de certa forma seria um passeio, que tiraríamos umas fotos da cidadezinha, o que fizemos. Aproveitando o momento do velório saímos à fotografar alguns pontos da cidade, mais precisamente os lugares próximos a casa onde morei. Assim caminhamos sobre a linha férrea, visitamos o açude, a estação do trem, o local onde um dia foi a casa dos meus avós. A estação ferroviária me trouxe muitas lembranças. As brincadeiras, os “morcegos” nos vagões do trem, até o dia em que meu pai descobriu e me deu aquela bronca. Aquela casa de encontros e despedidas hoje mais parece um velho mausoléu onde certamente estão sepultados alguns fantasmas da minha infância. E agora eu só quero é que eles fiquem mesmo por lá, bem enterrados. Mas voltando a viagem do meu tio, a sua última e definitiva viagem... Na igreja o comentarista fez toda aquela prática, com leituras e reflexões que nos convida a aceitar a realidade da morte e acreditar numa vida além. Ele fez a sua parte. A essa altura meu filho olhava pra mim com cara de quem já não agüentava mais aquela coisa tão solene (e, por conseguinte, tão maçante). Pedi a Deus que meu tio fosse sepultado o mais rápido possível.
E seguimos para o cemitério que fica um pouco fora da cidade. No caminho, contra o sol, e revezando com algumas poucas pessoas na condução do caixão, comecei a procurar alguma coisa que me distraísse, para tornar aquele momento menos doloroso e incômodo. Passei a prestar mais atenção nas conversas daquela gente. E gente simples é uma bênção. Impossível não sorrir e não se emocionar com aqueles anjos e suas aventuras. De repente alguém comentou qualquer coisa sobre a Copa do Mundo, estávamos vivendo já os momentos finais, e a seleção brasileira já havia sido eliminada. Bom, a conversa nos distraiu um pouco naquele trajeto aparentemente interminável. Enquanto umas senhoras rezavam, os homens encarregados de conduzir o caixão, comentavam sobre coisas que estavam mais ao alcance dos olhos. Foi aí que algo interessante aconteceu: a sandália de uma daquelas figuras fez feio: “soltou o cabresto”, como se diz no popular. Certamente não eram “as legítimas, aquelas que não soltam as tiras, que não tem cheiro”. Outro companheiro foi solidário, segurou o caixão em seu lugar enquanto o pobre homem consertava o seu calçado. E foi observando e vivendo essas pequenas coisas que acabei nem percebendo que o meu tio finalmente havia chegado a sua morada definitiva. Tudo se fez conforme o costume. Sua campa foi lacrada naquele finalzinho de tarde. Não houve choro, discursos ou homenagens. O ciclo se cumpriu. Já no carro, de volta pra casa com meu filho, meu irmão e a minha mãe, dei uma olhada para trás e pensei comigo: é... definitivamente, toda estrada tem o seu final, e o meio do caminho pode ser lugar nenhum.
Créditos: Texto e fotos: R&C
Outras lembranças...
Há alguns anos atrás, nessa data, o nosso saudoso amigo José Wilson de Oliveira (Zé) fazia a sua travessia para a outra margem. À família as nossas considerações. Seus irmãos: Fernando Oliveira, Ionaldo, Jorge Mário, Ronaldo e Maurício. E as irmãs: Salete, Vera, Estela e Margarida.
2 comentários:
Oi Eliel! Adoro acessar seu blog! Nos faz dar uma merecida viajem ao passado e relembrar nossa infânçia, nossas vivênçias e tudo que ficou para traz. Um beijo para todos da Rua, vizinhos e queridos amigos que tenho guardados no meu coração.
Ceiça Ramalho
Obrigado, Ceiça, pelos acessos, pelas palavras e lembranças, pela vizinha e amiga que você foi pra mim na nossa infância e adolescência (amiga ainda é), e eu vou falar de você a toda aquela gente. Tudo de bom!
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