“Ninguém ouviu/ Um soluçar de dor/ No canto do Brasil
Um lamento triste/ Sempre ecoou /Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro / E de lá cantou
Negro entoou/ Um canto de revolta pelos ares/ No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou...”
(Canto das três raças - Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro)
Caldeirão de sons:
Uma questão de identidade nacional
Sentado na plataforma dos sons, livro de Jorge Amado no colo, mochila de lado, espero. Espero o trem musical. Diante de mim desfilam bandolins, cavaquinhos, berimbaus, violões, violas, sanfonas e uma infinidade de instrumentos. Fecho os olhos e deixo a sonoridade me envolver. Atravessando campos e cidades, montanhas e planícies, alegre, barulhento, festivo, apitando dós, rés, mis, fás e demais notas, surge o trem. Repleto de música com cara e jeito de Brasil. País amado, pátria minha, berço dos meus sonhos. Embarco nessa viagem alucinante e me extasio com a diversidade de ritmos que formam a nossa música. Painel de sons que convergem para uma profunda identidade nacional. Sempre foi assim? Essa integração harmoniosa? Não. Nem sempre. Esse tecido artístico foi sendo construído aos poucos.
Nos tempos do Brasil colônia existia, por força das circunstâncias, o que hoje chamamos de “panelinha”. Havia uma música dos índios, uma música dos negros e uma música dos portugueses. Não era ainda música realmente de alma brasileira. “Coisas nossas, muito nossas”, como cantava Noel, o poeta da Vila. Cada qual fabricava sua própria cultura. Essa gostosa mistura que hoje saboreamos principiou a ocorrer em fins do século XIX.
Texto e sugestão da música: José Flávio
Ilustrações: Internet
A música indígena possuía um forte caráter religioso. Habitantes nativos integrados a natureza que eram, os índios cantavam e invocavam suas entidades sobrenaturais. Faziam cantos e danças os mais variados: da caça, da pesca, da chuva. Possuía a música entre as tribos um alto valor. “Dado esse valor ritual da música, as tribos basílicas cercavam de grande consideração os cantores de ambos os sexos. Locomoviam-se entre eles sem cuidado, mesmo por entre os inimigos e, se aprisionados na guerra, os vencedores não os sacrificavam nas cerimônias de antropofagia, gozando os seus filhos da mesma imunidade”, conta Oneyda Alvarenga, no livro Música Popular Brasileira. Desse valor dado a música pelos indígenas se valeram amplamente os padres Jesuítas no processo de catequese.
Os portugueses quando aqui desembarcaram na condição de dominadores, impondo suas tradições e costumes trouxeram em suas bagagens belos textos literários, verdadeiras pérolas da língua portuguesa. Trouxeram igualmente seus instrumentos de corda e de sopro. Tais como; violões, flautas, violinos, pianos, dentre outros.
À matriz africana deve a nossa música grande contribuição. Cada povo africano que aqui aportou, transportado como mercadoria nos porões dos navios negreiros, trouxe sua parcela de contribuição. Vieram com seus atabaques, tambores, chocalhos e uma diversidade fabulosa de instrumentos de percussão. Com sua criatividade fizeram o que um “chef” faz na cozinha: misturaram tudo. Fizeram combinações de voz e percussão, usaram, no fazer música, a diversidade de ritmos que tinham a disposição, pondo em cada experiência um pouco desse, um bocado daquele. Tudo isso sem perder a harmonia, o tempo, a graça, o encanto.
A musicalidade dos negros era coisa tão intrínseca a raça que eles cantavam mesmo em meio a penosa e extenuante jornada de trabalho nos canaviais. Cantavam nas casas dos senhores enquanto realizavam tarefas domésticas. O canto, na verdade, acabava imprimindo certo ritmo de trabalho para suas muitas tarefas. Vê-se que o dito popular “quem canta seus males espanta” vem de muito longe. Imagino como o canto e a batucada desse povo trouxe vida e alegria a “terra Brasilis”. Era nas festas públicas, geralmente festas ligadas ao catolicismo, que os negros tinham melhor oportunidade de expressar sua música, seu batuque, sua dança. Divertiam-se a valer. Esses momentos eram praticamente seus únicos momentos de lazer. Da invocação aos Orixás o povo africano deixou legados que ainda hoje se fazem sentir nos afro-sambas que tão fartamente se fazem presentes em nossa cultura musical e nas religiões afros.
Voltando dessa viajem musical, sossegado no banco do meu trem, que bem poderia ser um trenzinho caipira guiado por Villa-Lobos, penso em como a música brasileira, de uma forma geral, é tão falada, comentada e admirada também no exterior. Pode-se dizer que a nossa música tornou-se um produto de exportação. Vários de nossos ritmos já ganharam o mundo, tais como: o samba, bossa-nova, o axé, o batuque do Olodum e tantos outros. Esse fascínio dos gringos pela nossa música talvez seja por ela agregar vários elementos, basicamente, das três etnias que formam a nação brasileira. Nós brasileiros então, nem se fala. Amamos o som de boa qualidade que se produz nesse pedaço de chão verde, amarelo, azul e branco. Enquanto em pensamento faço essas considerações uma certeza me vem à mente: foi dessa mistura de raças, cada qual colocando nesse caldeirão um pouco de seu tempero peculiar, que surgiu essa farta variedade de ritmos e sons que enriquecem e torna tão bela e atrativa a nossa música brasileira.
Texto e sugestão da música: José Flávio
Ilustrações: Internet
Um comentário:
Não poderia deixar de comentar o texto, que aliás é muito bom. Sou suspeito em falar,pois sou um fã da música como um todo,principalmente as de raízes mestiças surgidas principalmente em toda a latinidade.Grandes músicos desfilaram e ainda desfilam essa riqueza e não poderíamos falar nisso sem antes ouvir um Gil, um Pixinguinha, um BB King, um James Brown, um Bob Marley, entre outros...
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