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"Engolimos de uma vez a mentira que nos adula e bebemos gota a gota a verdade que nos amarga." Denis Diderot

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Leia essa canção

“O livro que você me deu pra ler
Eu não terminei
Haviam páginas rasgadas, com o tempo.
(...)
As nossas fotos de 86 não existem mais
Lembra de como era tão legal
Rirmos juntos
Nossa verdade, nossos ideais ainda
Estão aqui.”
(O sonho não acabou - Kim/César/Júlio
 - Gravação: Catedral)


Músicas de Chico Buarque e de Renato Russo servem de inspiração para contos reunidos em dois livros recém-lançados  

Ivan Claudio
A produção literária registra inúmeros livros inspirados em obras já existentes – o primeiro exemplo a vir à mente é “Ulisses”, de James Joyce, que tem como ponto de partida a “Odisseia”, de Homero. Mais recentemente, o espanhol Enrique Vila-Matas usou como mote o conto “Bartleby, o Escrivão”, de Herman Melville, para escrever o romance “Bartleby & Companhia”. Muita gente, aliás, acredita que hoje não se faz mais arte sem levar em conta a tradição. E se, num movimento oposto a essa inspiração natural, escritores fossem convidados a criar obras a partir de outras? Essa é a ideia por trás de dois livros lançados no Brasil – só que, agora, o modelo para essas narrativas são canções populares. São eles “Essa História Está Diferente – Dez Contos Para Canções de Chico Buarque” (Companhia das Letras) e “Como Se Não Houvesse Amanhã – 20 Contos Inspirados Em Músicas da Legião Urbana” (Record).

A leitura dessas duas compilações é uma experiência nova. Como as músicas de Chico Buarque e da Legião Urbana são muito conhecidas, o leitor avança as páginas desejando se deparar, enfim, com uma referência aos versos da canção que tem em mente. Alguns autores seguem à risca a letra do compositor, como Luis Fernando Verissimo, que escolheu o samba “Feijoada Completa”, de Chico. A música faz menção à volta dos exilados, mas Verissimo preferiu narrar uma crise conjugal. A feijoada do sábado, que o marido pede à mulher para preparar, seria a gota d’água. “Vai chegar todo mundo com uma fome e uma sede de anteontem”, diz o homem para a companheira, pelo telefone, como na canção.
No entanto, esse não é o procedimento mais frequente nos dois livros. No conto “Tempo Perdido”, que Tatiana Salem Levy escreveu inspirada na música da Legião Urbana, trechos da letra aparecem aqui a ali. “Acreditavam ter todo o tempo do mundo” ou viam “o sol das manhãs tão cinza”, se diz dos amantes separados pela ditadura militar numa total reinvenção do conteúdo da canção. Outro exemplo do afastamento da situação sugerida pelo compositor é “O Direito de Ler Enquanto se Janta Sozinho”, do escritor argentino Alan Pauls. Os versos de Chico Buarque que serviram de modelo (“Ela Faz Cinema”) aparecem apenas como ringtone do celular de uma adolescente – cujo pai a espera diante da escola e suspeita que ela tenha um caso com o professor.
O livro “Essa História Está Diferente” foi organizado pelo jornalista e escritor Ronaldo Bressane, que escolheu autores não cariocas, uma forma de fugir da cor local. O time se completa com o mexicano Mario Bellatin, o moçambicano Mia Couto e os brasileiros João Gilberto Noll e André Santana, entre outros. “Pensei que a maioria ia cair para o lado feminino, mas isso não aconteceu”, diz Bressane. No caso do livro “Como Se Não Houvesse Amanhã”, organizado por Henrique Rodrigues, a exigência era que os escritores fossem fãs da Legião Urbana. Isso explica os novos nomes entre os 20 selecionados, como Marcelo Moutinho, Miguel Sanches Neto e João Anzanello Carrascoza. Rodrigues não vê problema em relação ao criticado fato de os autores estarem trabalhando sob encomenda: “Isso profissionaliza a atividade literária no Brasil.”
Fonte: Revista ISTOÉ – Edição 2117 – 09JUN/2010

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