-

"Engolimos de uma vez a mentira que nos adula e bebemos gota a gota a verdade que nos amarga." Denis Diderot

sábado, 3 de abril de 2010

UM CONTO DE PÁSCOA



Nasceu pobre, mas era quase feliz, posto que não passara fome e na sua infância tudo servira de brinquedo. O que lhe incomodava tinha muito tempo era o nome que lhe fora dado pelos pais. Judas Tadeu. Era nome de Santo, mas achava feio. Só ganhava pra Evandregesimo, um primo distante. Logo esqueceram o Tadeu. Fora ofuscado pelo Judas que o perseguia. Bastava se aproximar a quaresma para que os colegas de escola e catecismo já o comparassem, num misto de gozação e ódio, ao traidor de Cristo. Era um tormento. Naquele período se sentia o pior dos mortais. Não queria ter o nome de quem com um beijo entregara o Filho do Homem. Chegava à Igreja e via as imagens com rostos cobertos com panos roxos, mulheres entoavam cânticos fúnebres, homens tocavam uns instrumentos de madeira estranhos. Achava que tudo aquilo era contra ele, o Judas, de carne e osso ali presente. O velho Padre lia o Evangelho emocionado, falando em paixão e morte de Cristo, mas ele, o Judas é que estava morrendo. Aqueles Santos cobertos o evitavam, aqueles homens e mulheres o importunavam com seus barulhos. Aquilo, com mil perdões era sim o inferno, antes de ser a igreja. Chorava ao chegar em casa. Não podia ter um sentimento odioso com a casa do Senhor. Na sexta feira da paixão amanhecia exausto. O que lhe consolava era o almoço, que sua mãe preparava especialmente para aquele dia: baião-de-dois, peixe com mangaba. Não entendia aquela mistura, mas gostava, ficava quase feliz. À tarde, procissão, o enterro de Cristo, morto por causa dele, Judas, o falso, o covarde. Voltavam às amarguras. Chorava para não ir. Os pais diziam que era pecado mortal não acompanhar os ritos dos dias grandes. Lá ia ele, subindo e descendo as ruelas de sua cidade. Literalmente uma via sacra, pro Cristo e pro Judas. Era um estorvo no meio de todos aqueles fieis. Só ele infiel. Quando à noite chegava implorava para não ir ver o filme da paixão. Aquelas cenas eram demais. Mais a do Judas no suicídio da forca do que propriamente a do Senhor crucificado. Ficava aliviado. Aleluia! Deixavam-no na casa da avó, onde tentava dormir cedo para acabar aquela semana sofrida, mas eis que a meia noite gritos vindos da rua o acordavam. Eram bêbados, crianças e até beatas, rasgando (ou malhando) o Judas. Aquilo lhe doía as tripas, os ossos, a carne, a alma, mas achava que merecia e chegava a ficar quase feliz. Talvez ali estivesse sendo perdoado. Depois, aos doze anos, o trauma se acentuou. Já existiam os tais ovos de páscoa. E ao receber um da tia rica, passou a semana santa internado, pois tinha alergia ao chocolate. Como saber se não havia comido aquela gostosura antes? Castigo, Judas não podia exercer a gula, enquanto o Senhor padecia. Anos depois acordou de um longo coma. Tivera pesadelos, onde era esquartejado e sua carne queimava como se estivesse numa fogueira. Uma mulher segurava sua mão e várias pessoas ao seu redor rezavam risonhas. Na verdade estava cheio de queimaduras, pois no ano anterior havia sido o solitário e corajoso bombeiro a combater o incêndio na igrejinha de sua cidade, causado por velas no auge das celebrações da quinta feira santa. Estavam todos ali assistindo ao milagre de sua cura. Quem lhe informara era um senhor de branco, cuja figura ainda turva lhe deixava confuso se era o médico ou Cristo ao anunciar a redenção de Judas. Enfim a sua Páscoa. Passara de um sonho dolorido para a realidade também dolorida, mas sem culpa. Renascera. Era outro, o mesmo Judas, mas outro. Da cozinha exalava o velho cheiro de baião de dois e uma voz de criança reclamava do fedor de peixe e daquelas mangabas melequentas na geladeira. Estava feliz.

Foto dos coelhos: internet

Nenhum comentário: