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"Engolimos de uma vez a mentira que nos adula e bebemos gota a gota a verdade que nos amarga." Denis Diderot

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Do Face XXVII


AVE...


Não quero dizer que foi engraçado, porque na realidade não foi, mas, no mínimo curioso. Eu estava, naquela tarde, numa fila enorme, buscando a remissão dos meus pecados, numa dessas agências bancárias aqui da cidade. Ora, chegaram algumas funcionárias de outra repartição pública, trazendo com elas um andor com a imagem da Virgem da Conceição e que, para aquelas senhoras, parecia bastante pesado. Pois bem. O horário de expediente externo já havia terminado naquele banco, a porta de vidro de acesso ao atendimento já estava fechada e de repente criou-se um impasse desnecessário ali. O guarda, pelo lado de dentro, olhou meio indeciso, ainda chegou a pegar nas chaves, mas talvez temendo ser chamado atenção, procurou um funcionário da agência, muito elegante por sinal, com pinta de galã, mas cara de Pôncio Pilatos que, ao ver o movimento atípico daquela ocasião, até franziu a testa. Acho que, sem informação do que se tratava - o ofício anunciando a visita da imagem talvez não tenha circulado ali tanto quanto as cédulas de real -, ele decidiu chamar seu superior, e lavou as mãos daquele caso. Definitivamente. Enquanto isso, aquelas senhoras esperavam la fora autorização para entrarem com o andor. E algumas menos devotas já reclamavam da espera e do peso. Eis que se vê um clarão, e aparece o gerente (o danado é bem alvinho). Educado e sorridente - aliás, os gerentes sempre se mostram mais simpáticos que alguns funcionários -, que fez finalmente a merecida recepção. Se dirigiram para uma outra parte do prédio, e o que se deu em seguida, se fizeram alguma oração, ou ao menos o sinal da cruz, isso eu não sei. Permaneci ali na minha fila, feito um verdadeiro penitente, e rezando, eu sim, para que o danado do caixa eletrônico fizesse a leitura do meu surrado cartão magnético, já que nos finais de semana, mesmo que a cidade inteira acorra para lá em romaria, nem por um milagre se encontra um centavo naqueles caixas. Mas naquela tarde eu fui abençoado. O saque foi realizado com sucesso. À noite, voltando do trabalho, lembrei que me faltava ainda fazer um pagamento. Não costumo ir às agências bancárias durante a noite. Já me basta o medo que me acompanha durante o dia. Mas dessa vez deu tudo certo, com as bênçãos de Nossa Senhora. Me admirei depois do medo que naquela noite não se apossou de mim. Naquela noite. Por uma graça, naquela noite apenas. (Eliel Silva - 04.11.2015)

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