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"Engolimos de uma vez a mentira que nos adula e bebemos gota a gota a verdade que nos amarga." Denis Diderot

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Dos tempos do Chaminé


“Em paz eu digo que eu sou o antigo do que vai adiante.
Sem mais, eu fico onde estou, prefiro continuar distante...”
(Resposta – Nando Reis / Samuel Rosa)





Jorge Soares de Oliveira

“Só se vê bem com o coração.
O essencial é invisível para os olhos.”
Exupéry
Nos Estados Unidos, lá pelos anos 20 e 30, eles eram a voz do seu país. Lemon Jefferson, Willie Mctell, Willie Johnson e outros mais. Algumas décadas depois, Ray Charles, Jeff Healey e Stevie Wonder. Astros insuperáveis, cada um com o seu estilo. Aqui no Brasil há também exemplos de deficientes visuais que se tornaram grandes músicos: o compositor e arranjador Sérgio Sá; a cantora Kátia, afilhada musical de Roberto Carlos e protegida do rei no final da década de 70 e início dos anos 80; e ainda alguns componentes da banda Tribo de Jah. Músicos que, além do talento, tiveram a sorte de encontrar o apoio, inicialmente da própria família, com certeza, mas também de pessoas influentes no meio musical.
Aqui na nossa cidade temos também o nosso artista que tomou a música como um meio para superar as barreiras encontradas pelos deficientes visuais. Mas ele não é famoso. Vive quase no anonimato. Dificilmente é convidado para se apresentar em algum evento.
Jorge Soares de Oliveira, 62 anos, mora na Casa de Caridade São Vicente de Paulo (o abrigo), onde chegou no ano de 1965. Bem acomodado num banquinho, à sombra daquela enorme casa, no final da tarde, sem mistérios, ele abre o seu coração. Me contou que com poucos dias de vida, foi deixado na porta de uma viúva, já mãe de 12 filhos. Hoje, tudo que sabe da sua infância foi sua mãe adotiva, a senhora Maria Soares de Oliveira quem lhe contou. Inclusive que o seu problema de visão foi causado em conseqüência de ter sido deixado na porta dessa mulher caridosa, desprotegido das ações do clima daquela região. Mais tarde, com a morte de sua mãe adotiva - a verdadeira ele nunca conheceu -, teve que deixar sua pequena cidade, Lagoa do Sítio, vindo para Ceará-Mirim, e se instalou no abrigo, onde mora até hoje. Nessa época, segundo ele, as coisas eram bem mais difíceis, pois na sua nova morada não existia sequer um radinho de pilha para alegrar o ambiente. Foi aí que ele resolveu aprender a tocar um instrumento. Primeiro o cavaquinho, depois o violão. Autodidata, Jorge não conhece o nome dos acordes que constrói no violão. E o mais curioso: ele é canhoto, mesmo assim não toca com as cordas invertidas e faz as posições por cima do braço do violão e não da maneira tradicional. Como ele mesmo diz, um destro pode muito bem pegar o seu violão e tocar sem problema nenhum, pois a posição das cordas não se altera.
Foi ouvinte assíduo da extinta Rádio Novos Tempos, onde aprendia novas canções ligado nos programas de Etevaldo Alves e do Coronel Ananias. Hoje, nós que fazemos o programa Jovem Guarda Especial, na 87 FM, temos a honra de ter Jorge como ouvinte que aliás, vez em quando faz solicitação de algumas músicas. Sua companheira há mais de 25 anos, a senhora Salete Fernandes – irmã do saudoso “Pedrinho” da Igreja -, divide com nosso amigo todos os momentos da vida. As dificuldades e as alegrias.
Tempos atrás, Jorge fazia parte dos músicos que tocavam na Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Eu mesmo o vi tocando muitas vezes, e com diversos parceiros como Marcos Câmara, Ademaci, Oneida e Clóvis (aquele do cavaquinho e da flauta doce). Sobre o motivo do seu afastamento dali, ele, na sua costumeira inocência, afirma que foi devido o aparecimento de um órgão eletrônico que substituiu os outros instrumentos. A verdade meu caro Jorge, é que a questão não está no instrumento em si. O problema é a ribalta em que se transformaram alguns altares. Experiência como a sua eu também já passei. Aliás, nós somos de um tempo em que pra se chegar mais perto de Deus não carecia tanto alarde, tampouco era preciso alçar vôo em balões de gás hélio. Mas tenho certeza que o som dos seus acordes construídos em seu velho violão, na simplicidade nua dos seus momentos de descontração e louvação a Deus, se juntará a outros sons divinos, de instrumentos que certamente não se afinam ao diapasão, e será essa a maneira mais singela, pura e correta de louvar o Pai da criação.
No repertório de Jorge, há uma canção que ele não dispensa: Felicidade, de Lupicínio Rodrigues. “Felicidade foi-se embora e a saudade no meu peito inda mora e é por isso que eu gosto lá de fora, porque sei que a falsidade não vigora.” A impressão que se tem é a de que Jorge vê bem mais além...
Texto: Eliel Silva
Imagens: Arquivo do blog 
* Publicado originalmente no jornal Gazeta Culcural (Ruy Lima), depois no blog Chaminé (Edvaldo Morais)

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