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"Engolimos de uma vez a mentira que nos adula e bebemos gota a gota a verdade que nos amarga." Denis Diderot

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Lá de cima

"Mas é que lá em cima
lá na beira da piscina,
 olhando os simples mortais..."
(Judas - Raul Seixas / Paulo Coelho



No mês de agosto o Brasil comemorou os vinte e dois anos da morte do cantor e compositor Raul Seixas. Maluco, irreverente, contestador, metamoforse ambulante, Raul Seixas era um homem à frente de seu tempo. Passou pela terra como um cometa brilhante. Deixou um legado que até hoje é preservado pelos seus admiradores e fã-clubes espalhados por todo o Brasil. Nesse texto, escrito em primeira pessoa, deixo Raul se dizer. Em algum ponto, aquele que conhece seu pensamento e sua obra poderá questionar: “mas Raul não pensava assim”. E a metamorfose ambulante? E o estar aberto a conceitos novos?  No mais, é um texto afinado com o pensamento de Raul e com muitas alusões à sua obra.
***
As aventuras e reflexões de Raul Seixas na cidade das estrelas

Meu nome é Raul. Raul Santos Seixas. Nasci em Salvador, Bahia, em 28 de Junho de 1945. Deixa eu me dizer de outra forma, que essas falas muito certinhas não fazem muito meu estilo não. Vocês estão cansados de saber que, enquanto vocês se esforçam pra ser um sujeito normal, eu por outro lado, vou aprendendo a ser louco, um maluco total, na loucura real. Controlando minha maluquez, misturada com minha lucidez.  Na verdade, “Eu sou a areia da ampulheta... Cachaceiro mal amado, o triste-alegre adestrado. Eu sou a areia da ampulheta.      O que ignora a existência de que existem mais estados, sem idéia que é redondo, o planeta onde vegeta”.  Quando nasci? “Nasci há dez mil anos atrás e não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais”.  No jogo da vida “prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo, sobre o que é o amor, sobre quem eu nem sei quem sou”.
Meu lugar agora são os espaços etéreos, as regiões mais distantes do cosmos. Gosto de admirar a beleza da lua de Júpiter... Os anéis de Saturno... Adoro passear pelas galáxias distantes. Bicho, elas são de rara beleza. Não encontro palavras com as quais possa construir uma descrição. São jardins de luzes coloridas. Uma das coisas que já aprendi, e que se constitui num dos meus passatempos favoritos, é me misturar ao brilho delas. De vez quando, o moço do disco voador me leva pra dar uns passeios surreais. É um modo de fugir da rotina.
Fui chamado aos caminhos da eternidade em 21 de agosto de 1989. Do lado de cá, encontrei respostas para as questões existenciais que sempre foram motivo de questionamento para os homens de todos os tempos. Minhas companhias aqui são selecionadíssimas! Um pessoal bem bacana! Tem um jardinzinho bem transado onde nos reunimos para bater um papo, chama-se Jardim do Éden. Quando eu chego Ghandi já está por lá, depois vão chegando Platão, Schopenhauer, Oxalá, Shiva, Krishna, Jesus Cristo. Até Crowley, aparece por lá de vez em quando.  A conversa vai longe. Entramos eternidade adentro, discutindo a evolução humana, evolução espiritual, destinos da humanidade e questões desse tipo.
Tenho meditado, ultimamente, acerca de algumas das mais belas páginas da filosofia: o Mito da Caverna, de Platão. É um dialogo metafórico entre os personagens Sócrates e Glauco. Sócrates pede a Glauco que imagine uma caverna. Dentro dela, homens que sempre estiveram acorrentados, sem poderem se locomover. A única visão que possuem é a parede em frente a eles. A única iluminação do ambiente vem de uma fogueira atrás deles. Entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente e, ao longo deste, um muro. Ao longo desse muro passam homens transportando animais e objetos. Uns conversam. Outros passam em silêncio. Essa movimentação provoca sombras na parede à frente dos prisioneiros. Os habitantes da caverna tomam essas sombras e os sons que vem do exterior como realidade.
Se um desses prisioneiros fosse arrastado à força para fora da caverna ficaria, à princípio, completamente perdido. Sentiria dores pelo corpo devido ao fato de ter ficado tanto tempo sem movimentar o corpo. A luz do sol o ofuscaria e ele seria obrigado e desviar o olhar. Não conseguiria fixar diretamente as pessoas e objetos reais. Seria uma adaptação dolorosa até que ele conseguisse contemplar as coisas com nitidez. Igualmente doloroso seria o processo inverso, ou seja, passar da luz às sombras. Acostumados à luz, seus olhos teriam dificuldade em encarar às sombras. Certamente sofreria com a zombaria de seus antigos companheiros. Diriam eles: “o mundo lá fora não te fez bem. Te afetou a vista e ainda embaralhou tuas idéias”. Até fazê-los compreender a realidade, teria um longo caminho pela frente.
Assim também é o plano físico. A humanidade enxerga sombras na parede e crê que é realidade aquilo que enxerga. Claro, há os que conseguiram subir pelo caminho ascendente e brilharam. Há também aqueles que se esforçaram por abrir os olhos de quem estava na caverna e não se deu nada bem. Lembram do filho do dono da vinha? Pois é, ele esteve aí, há dois mil anos atrás, pregando umas verdades e o mataram pregado na cruz. Eu hein! Eu não sou besta pra tirar onda de herói...
A minha história a maioria de vocês já conhece.  Cresci menino da classe média baiana. Freqüentava os melhores clubes de Salvador. Mas o rock veio alterar a rota do trem quando fui morar perto dos norte-americanos que tinham vindo pra Bahia por causa da Petrobrás, que havia acabado de se instalar na região. Com a molecada americana ouvi os primeiros acordes daquele ritmo que modificaria meu modo de ser. Little Richard, Chuck Berry, Elvis Presley. Era brasa pura. Me envolvi com a coisa de tal forma que, quando vi, eu já estava fundando um fã clube do Elvis: o Elvis Rock Club. Depois botei a mão na massa e fundei, junto com outros amigos, o The Phanters que depois veio a ser chamar Os Panteras. O rock era, na época, uma música marginalizada. Era música tocada em subúrbio, não em teatros e salões. E eu envolvido com essa gente. Imagina o trabalho que dei pros meus pais! Os Panteras eram a melhor banda de Salvador, por isso, quando a turma da Jovem Guarda vinha à cidade e precisava de acompanhamento, era a nós que eles chamavam.  Tocamos com Roberto Carlos, Wanderléia, Ed Wilson, Wanderley Cardoso. Os meus favoritos eram os Jet Black. Até que o “cumpadi” Jerry Adriane nos levou para o Rio de Janeiro. Lá gravamos um disco que, comercialmente, não emplacou. Voltamos pra Salvador. Rapaz, entrei numa depressão, que não é bom nem falar! Aí conheci um cara que era diretor da CBS, o Evandro Ribeiro, que se tornou meu amigo em Salvador. Tempos depois esse cara me faz um convite para voltar ao Rio como produtor fonográfico da gravadora. Voltei pra cidade maravilhosa. Porém o emprego burocrático não era a minha praia. Como produtor ouvia tanta música sem qualidade e letras medíocres que resolvi gravar meu próprio LP. Aproveitei um descuido do patrão... e gravei o disco Sociedade da Grã-Ordem Cavernista Apresenta Sessão das Dez(1971). Os diretores ficaram bravos recolheram o disco da praça e, ainda por cima, me demitiram. Fizeram foi uma grande burrada. Fui pra Philips e entrei lá pela porta da frente. Depois disso me sobrevieram glórias e fracassos. A maioria dos meus trabalhos é autobiográfico. Neles eu me desnudo. Digo quem sou. A parceria com Paulo Coelho foi bem importante em minha carreira.
Uma das minhas maiores mancadas foi não ter percebido as armadilhas na beira da estrada. Por exemplo, a dependência ao álcool me trouxe uma pancreatite e, com ela, vieram dores terríveis, internações em hospitais e outros desconfortos que vocês nem queiram imaginar.  O abuso das drogas me trouxe muitos problemas e me fechou muitas portas.
Eu e Paulo mergulhamos de cabeça na obra do bruxo inglês Aleister Crowley, dentre ela, eu destaco o Livro da Lei, aliás, foi essa obra que inspirou a música Sociedade Alternativa. “Faz o que tu queres pois é tudo da lei”. Vivi isso com intensidade. Hoje eu sei que a vida é um cheque em branco, você pode preenchê-lo do jeito que você quiser, mas... A lei de Thelema é uma “faca de dois gumes”: tanto pode elevar o homem como pode também destruí-lo.  Você pode fazer o que quiser, mas não esqueça: tudo há de ter seu preço. E alguns produtos podem te sair custando bem caro...
Pra terminar digo que, algumas vezes, ouço meus fãs dizerem “Poxa porque que o Raul tinha que ter ido tão cedo. Ao que eu diria: “Quem escapa do Trem 103? Acho que era “louco demais pra ficar mais tempo por aí...”
À minha família, aos meus fãs, meus amigos, fã-clubes espalhados por todo o Brasil eu quero agradecer o carinho que até hoje vocês sentem por mim. Obrigado por preservarem minha memória e minha obra. Daqui de cima vejo o esforço de vocês e isso me emociona... Tenho que ir agora: o Chefe me chama.
Um grande abraço a todos! (Especialmente pra você Plininho, meu irmãozinho, companheiro de traquinagens na meninice).
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 José Flávio
(colaborador do Retratos & Canções)

Um comentário:

CAVALVANTI disse...

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