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"Engolimos de uma vez a mentira que nos adula e bebemos gota a gota a verdade que nos amarga." Denis Diderot

sábado, 23 de outubro de 2010

Conto de areia

Clara Nunes:
Uma guerreira no reino da MPB (2ª parte)

Por José Flávio (colaborador)

Um sabiá sentou-se num dos galhos de uma árvore próxima e soltou a maviosa voz numa canção. Agradeceu a Deus por aquele agradável momento. Passou os dedos entre os belos cabelos crespos e volumosos. Voltou os pensamentos novamente ao início da carreira.
Lembrou-se do dia em que dera a cartada decisiva. Sentara-se à mesa de reuniões com os grandes da Odeon. “Quero propor uma gravação de um LP que represente uma virada na minha carreira. Algo totalmente novo que represente uma ruptura com os trabalhos anteriores”. Os diretores olharam meio desconfiados aquela moça mineira, com ar de quem diz: “essa moça deve estar ficando louca”. Entretanto compraram a idéia de loucura contida naquela proposta. Negociação vai, negociação vem, chegou-se ao nome de Adelzon Alves para produzir os discos. “Mas Adelzon??!! O cara nem produtor é. O programa de rádio que ele apresenta é um sucesso, mas daí a ser produtor vai uma grande distância”. Não arredara pé. Queria o radialista para produzir seus discos. Era ouvinte do programa Adelzon Alves, o amigo da madrugada. O apresentador desenvolvia um trabalho interessante, cuja proposta era uma valorização da cultura nacional. Procurava mostrar compositores do morro, muito bons, mas que não tinham espaço na grande mídia. Muitos compositores e interpretes já haviam passado pelo seu programa; Cartola, Candeia, Nelson do Cavaquinho, Paulinho da Viola, Martinho da Vila. Depois de muita negociação o nome do radialista foi confirmado como produtor de seus discos. Começava aí a grande guinada na sua carreira e uma parceria que daria muitos frutos.
“Vamos provar a eles que você pode cantar samba”, dizia Adelzon. E a mudança se deu como que “da água pro vinho”. Fez uma mudança completa. Mudou o repertório, as vestimentas, o cabelo. Mudou geral. Nascia naquele momento a Clara Nunes, que se firmaria no imaginário popular; vestidos brancos longos e cheios de renda, colares, pulseiras, guias de santos da umbanda e do candomblé, turbantes. Um visual, que de certa forma, remetia à pequena notável, Carmem Miranda, com seus balangandãs.
O novo visual a aproximava das religiões-afro. Na construção dessa nova imagem artística estava contida a idéia de valorização da herança cultural e mística trazida pelos africanos para o solo brasileiro. Toda essa mudança de rumo atingiu o ápice com o lançamento do disco Clara Nunes, 1971. Sendo coerente com a sua proposta de trabalho Adelzon mesclou o novo com o antigo. Deu oportunidade a compositores novos como Gisa e João Nogueira, na música Meu Lema. O mestre Noel Rosa também se fez presente em Feitio de Oração e ainda trouxe do nordeste a parceria Zé Dantas/Luiz Gonzaga, em Sabiá. O disco foi um sucesso, vendeu de longe, muito mais que os anteriores. A mídia voltou os olhos para ela. Começava a ser o centro das atenções. O carinho do público começava a ser despertado. Ela, com sua beleza, sua voz, seu charme, carisma e simpatia conquistava a todos. Começava a brilhar, tal qual estrela cintilante, no céu da música popular brasileira.
O espírito a levou ao ano de 1973. Teatro Castro Alves, Salvador, Bahia. As luzes fortes do palco. O Violão de Toquinho. A voz de Vinícius de Moraes, falando suavemente:
E agora, eu gostaria que vocês curtissem um bocadinho, como eu curto tanto, essa moça maravilhosa aqui à minha direita: Clara Nunes. Uma moça que eu senti, cuja sensibilidade eu senti, desde que ela começou a cantar no Rio de Janeiro, e o timbre, a qualidade do tecido da voz dela me encantaram de saída. E eu senti que um dia deveríamos trabalhar juntos. E, realmente, é a primeira vez que isto acontece para grande contentamento meu. É com prazer enorme que eu trago para vocês, Clara Nunes... Acho uma das maiores cantoras brasileiras do momento, e das que tem mais possibilidades de fazer uma grande carreira, um grande caminho na canção popular do Brasil.
As lembranças agora vinham como a velocidade das águas cristalinas que descem em cascatas pelas cachoeiras.
O Fantástico, programa televisivo da Rede Globo, foi uma grande vitrine. Os seus videoclipes eram assistidos por telespectadores extasiados com a sua beleza e a força de suas canções. Os amores; Aurino Araújo (irmão de Eduardo Araújo, integrante da Jovem Guarda), que conhecera ainda em Belo Horizonte; Adelzon Alves; Paulo César Pinheiro, com quem trocara alianças. O problema no útero que a impediu de ter filhos. Os amigos queridos; Vinicíus de Moraes, Elis Regina, Sérgio Reis, Alcione. Uma águia altaneira rasgou o céu azul e branco. Ah, Portela, escola querida! Quantos amigos por lá! Os sucessos brilhavam como estrelas reluzentes. O álbum Alvorecer, 1974, a transformara numa das maiores vendedoras de discos do país. Aliás, todos os discos, a partir de 1971, foram coroados de êxito. Os grandes sucessos; Coisa da antiga, Morena de Angola, Conto de areia e tantos outros. O Teatro Clara Nunes, que felicidade! Por fim, as águas da cachoeira a levaram a Minas, terra querida... “quando vim de Minas trouxe ouro em pó...” Menina pobre, em Cedro, que depois passou a se chamar Caetanópolis. Pés descalços, no chão, brincando na areia com os irmãos. Outra hora, ajudando a mãe na cozinha. Filha de Manoel Pereira de Araújo(Mané Serrador) e Amélia Gonçalves. Uma luz dourada envolvia o momento de seu nascimento, em 12 de agosto de 1942.

***
Rio de Janeiro.
Madrugada. Dia 02 de abril de 1983.

Já haviam se passado vinte e oito dias de agonia. Durante todos esses dias, o marido, Paulo César Pinheiro, e a irmã Maria, que Clara chamava carinhosamente de Dindinha, foram presença constante. Dindinha era Kardecista e possuía grande sensibilidade, ou intuição, como preferirem denominar. Há quase um mês no Rio, cuidando da irmã, tirou um breve tempo para ir a Minas ver como estava o restante da família e a casa. Na volta, logo que entrou no CTI da clínica, percebeu que a irmã não passaria daquele dia. Em presença do médico, achegou-se para perto dela, e com os olhos cheios de lágrima, falou suavemente ao seu ouvido: “Maninha querida, você estava só esperando por mim, não estava? Fique tranqüila, já estou aqui do seu lado. Pode seguir seu caminho em paz pela eternidade”. Minutos depois, às quatro e meia da manha, os portais da eternidade se abriam para receber Clara Nunes, um ser de luz.
Bibliografia consultada:
Clara Nunes. Guerreira da Utopia/Wagner Fernandes – Rio de Janeiro. Ediouro. 2007
Revista Veja. Edições de 13 de outubro de 1982 e 23 de março de 1983
Artigos da Internet:
Tem Orixá no samba: Clara Nunes e a presença do Candomblé e da Umbanda na música popular brasileira. Rachel Rua Baptista Bakke . end: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-85872007000200005
As religiões de Clara Nunes: o canto como missão. Profa. Dra. Silvia Maria Jardim Brügger. end.
http://www.ichs.ufop.br/ner/images/stories/Silvia_Maria_Jardim_Brugger.pdf
Audiovisual:
DVD, Clara Nunes, os musicais do Fantástico das décadas de 70/80. Globo Marcas.
CD - Show Poeta moça e violão/Clara, Vinicius e Toquinho.

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