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"Engolimos de uma vez a mentira que nos adula e bebemos gota a gota a verdade que nos amarga." Denis Diderot

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Do Face XX




TREM DO ALÉM


Eu embarquei naquele trem meio sem querer. É que eu caminhava sem destino, e uma pequena estação surgiu na minha frente, no meio do nada. Ouvi um apito longínquo e era a locomotiva que deslizava sobre os trilhos de uma estrada de ferro perdida. As portas se abriram e eu escolhi o último vagão. Não sei porque, eu não tinha pressa nenhuma de chegar. Me acomodei por entre aqueles passageiros que pareciam vindos de outras épocas. Alguém acendeu um cigarro esquisito e a fumaça tomou conta do vagão. Havia um aviso discreto que dizia: "É proibido fumar cachimbo, charuto ou cigarro de palha". Mas isso era o de menos pois a locomotiva, aparentemente cansada e sem manutenção, soltava uma nuvem de fumaça que se espalhava por todo o trajeto. Onde esse trem vai me levar? As vezes eu me perguntava. Ouvi o som de um instrumento de fole no vagão anterior ao que eu estava. Me levantei e caminhei na direção da música. Um ancião tocou levemente no meu braço e falou: “Não vale a pena!” Fiz um gesto com a cabeça, querendo lhe agradecer pelo alerta, mas segui em frente. Desobedeci. Ali estava mais animado. Bêbados e prostitutas faziam a festa no ambiente. Além de fumaça, ali havia bebida, música e fantasia. Mas foi numa curva mais fechada que pude observar melhor, pela janela aberta daquele vagão, a força motriz da composição. Ela avançando naquele mundo desabitado, me levando para onde eu não sabia. Tinha mais alguns vagões até chegar a máquina, e então resolvi passear por todos eles. Mais adiante, um monte de almas cansadas foi o que eu vi. Trabalhadores, andarilhos, mulheres destemidas, crianças mal cuidadas. Senti um desejo enorme de voltar atrás. Pegar uma outra condução que não carregasse tanto mistério. Era tudo tão estranho! Parecia que eu ia parar no inferno de Dante. Mas quando se está no caminho, seguir é o que se tem que fazer. Àquela altura eu já não tinha ambição nenhuma, nem vontade. Só me acomodei outra vez no assento, e dessa vez ao lado de uma jovem muito bela, mas sem nenhuma intenção da minha parte. Tentei puxar assunto, mas ela me pareceu longe dali. Só me falou: “A próxima estação é o fim da linha.” Sem saber o que dizer, ainda perguntei: “E como se chama o lugar da próxima estação?” “Terra de ninguém”, ela me respondeu. E se fechou com um ar sisudo. Mergulhou num silêncio assustador. Em meio a um turbilhão de apitos, aquele trem foi parando lentamente. As portas se abriram e as pessoas seguiram os seus rumos. Parecia um desembarque num apocalipse. Ninguém me esperava e eu segui adiante, sozinho e temeroso. O vento soprava suave e fazia um leve barulho nas folhas de uns eucaliptos, e ainda trazia um cheiro forte de melaço da cana cortada e esmagada há poucos dias. Eu não sabia, mas estava outra vez caminhando para a casa do meu pai. Já era madrugada. Ali eu chorava em silêncio.
(Eliel Silva - 29 de agosto de 2015)