Rio, 15 de Janeiro de 2011
Caro Amigo Tom,
Estava a vasculhar os porões de minha mente e encontrei uma relíquia. A propósito não sei por que a gente guarda tantas coisas no porão. Talvez seja por serem são recortes de momentos vividos. Lembranças de momentos felizes e de momentos tristes. Retalhos, enfim. E o que é a vida senão uma imensa colcha de retalhos?
Tenho em minhas mãos aquele disco de bolso que vinha junto com o tabloide O Pasquim, lembra? Está meio gasto pelo tempo, mas ainda é possível ver o ano em que foi lançado: 1972. Faz tempo, hein amigo? No encarte transcreveste um trecho do poema O Caçador de Esmeraldas, de Olavo Bilac:
Foi em março ao findar das chuvas, quase à entrada
Do outono quando terra em sede requeimada,
Bebera longamente as águas da estação
Que em Bandeira, buscando esmeraldas e prata
À frente dos peões, filhos da rude mata
Fernão Dias Paes Leme entrou pelo sertão.
Neste compacto simples(que trazia no lado B uma música do iniciante João Gilberto) foi gravado uma das tuas maiores pérolas: a clássica Águas de Março. Uma verdadeira obra-prima. Essa bela canção foi eleita em 2001 pelo jornal Folha de São Paulo, a melhor música brasileira de todos os tempos, numa enquete realizada pelo jornal entre personalidades do meio musical, cultural e jornalistas.
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho.
...
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de chão..”
É uma letra que vai apresentando elementos da natureza, entrelaçados, amarrados a uma melodia maravilhosa. São elementos que vão formando na mente do ouvinte uma imagem de um ambiente que se distancia dessa coisa urbana e nos leva a um ambiente de tranquilidade onde os problemas cotidianos são banais, tipo; um carro atolado na lama, um corte na mão, um espinho no pé. Problemas estes ofuscados pela beleza que circunda que adentra este ambiente; o peixe, a fonte, o regato, o vento. Somente um grande apaixonado pela mãe natureza para elaborar versos tão lindos.
Foi em março de 1972 que a compuseste. No sítio de Poço Fundo, região serrana do Rio. Lugar lindo. Lá era possível ouvir o sussurro da brisa matinal, ver o céu prateado de estrelas e a lua se derramando sobre o arvoredo.
Poeta é poeta. Seu planeta é metafísico. Enxerga além. Seus olhos veem beleza e poesia onde outros olhos apenas enxergam o obvio. Por exemplo, para mim um regato, é apenas um regato, nada mais. Tu porém, à beira desse mesmo regaço, tiveste a inspiração despertada qual flor que se abre em pleno esplendor de primavera. E, junto com as águas do regato, correu pedra, ponte, luz da manhã, promessa de vida no teu coração.
Lembro, perfeitamente, o dia em que voltaste do sítio com a música pronta. Passaste no Antonio’s (aquele restaurante que a turma costumava freqüentar) e chamaste todos à tua casa para ouvir a nova criação. Parecias um menino. Entusiasmado. Sorrisão no rosto. Entre um misto de empolgado e orgulhoso disseste: “O pouco que faltava, fiz agora à tarde”. Tiraste do bolso um papel amassado, sentaste ao banco do piano e dedilhaste ao violão a melodia e soltaste a voz em bela canção. A gente ficou ali embasbacados ao redor de ti, tal qual ébrios sedentos de vinho ou como abelhas sedentas de mel.
Nos dias subsequentes só deu a nova canção. Se alguém pedia alguma música, lá vinhas tu com Águas de Março. Já estávamos de “saco cheio”, mas era gostoso te ver tão empolgado. Depois a música foi parar no disco Matita Perê e correu mundo.
Quando você se juntou à Elis Regina, em 1974, para gravar o disco Elis e Tom, na verdade nos destes um belo presente. Joia rara. Que disco! Que canções! Que interpretação!
Gostávamos de ouvir as histórias dos bastidores deste disco. O disco foi gravado nos Estados Unidos. Contavas que depois de receber Elis Regina, César Camargo Mariano, marido dela, João Marcelo, filho de Elis com Ronaldo Bôscoli e os músicos do conjunto de César, no aeroporto em Los Angeles, tu os levaste para tua casa para uma primeira reunião. Quisestes saber quem faria os arranjos. Elis prontamente respondeu: “Meu marido, César Camargo Mariano”. Tu disseste enfático: “Não. Não concordo.” Uma pedra de gelo caiu na sala ao mesmo que tempo que uma pedra de gelo caía no copo de uísque de Elis. Enquanto ao telefone tentavas desesperadamente encontrar o americano Claus Ogerman, arranjador de Matita Perê, César sentou-se ao piano e concentrou-se nos arranjos que havia feito para o disco. E tocou maravilhosamente bem. Resultado: esqueceste do arranjador americano e no dia seguinte parecia que nada havia acontecido. Enquanto Elis levava João Marcelo para conhecer a Disney, César tranquilamente trabalhava nos arranjos.
Unir dois gênios explosivos num mesmo trabalho não deve ter sido fácil. O piano elétrico de César Camargo era o xodó de Elis e o teu terror. Elis te achava antiquado e tu a consideravas moderninha demais. Prevaleceu o bom senso e a admiração que um nutria pelo outro.
É amigo, to aqui enrolando, enrolando, para não ter que dar uma notícia desagradável, mas preciso fazer isto. O fato é que neste Janeiro os céus tem estado muito bravos e a natureza impiedosa. Aconteceram tragédias climáticas sem precedentes na história climática brasileira na região serrana do Rio. Aumento do nível das águas dos rios, alagamentos, deslizamentos de morros e encostas.
Aquela casa no sítio de Poço Fundo, na qual criaste tantas pérolas, foi levada pelas águas. Casa e árvores partiram pesarosas e, certamente contra a vontade delas. Acabei de ver esses fatos pelo noticiário. E mesmo assustado com tudo isso, resolvi te escrever. De uma coisa podes ficar tranquilo: os tesouros musicais que nos legastes, ah amigo, esses não tem correnteza que leve. As suaves águas de março se anteciparam e caíram fortes. Mas, como costumavas dizer “que se vá os anéis e fiquem os dedos”.
Um grande abraço cheio de saudade!
Pedro Henrique *
Texto de José Flávio, Campinas, SP
* Personagem criado pelo autor do texto (colaborador)
Foto: internet